Destaques

"...Enquanto ensinarmos que o mundo é um lugar a ser evitado, que as mazelas humanas são fruto da ausência de Deus, que Deus não ouve os pecadores, que só a igreja evangélica é que detém os "diretos autorais" da salvação, que ser forte e inabalável é sinônimo de fé e que ser pecador é ser inimigo de Deus então ainda não entendemos o plano da salvação e o evangelho de cristo rebaixado apenas á mais uma religião...."
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segunda-feira, 9 de março de 2015

SEM CONTABILIDADE - (Deus, Créditos e Débitos)

Por Rubem Alves

“Para escrever esta crônica, preciso de dois fios que deixei soltos. Porque eu escrevo como os tecelões que tecem seus tapetes trançando fios de linha. Também eu tranço fios. Só que de palavras.

               O primeiro fio saiu do corpo de uma aranha de nome Alberto Caeiro. (Aranha, sim. Tecemos teias de palavras como casas de morar sobre o abismo.) Disse: O essencial é saber ver (…) Mas isso (…), Isso exige um estudo profundo, Uma aprendizagem de desaprender (…) Procuro despir-me do que aprendi, Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, E raspar a tinta que me pintaram os sentidos.

               Volta-me à memória o meu amigo raspando a tinta das paredes da casa centenária que comprara, tantas tinham sido as demãos, cada morador a pintara de uma cor nova sobre a cor antiga. Mas ele a amou como uma nova namorada. Não queria por vestido novo sobre vestido velho. Queria vê-la nua. Foi necessário um longo striptease, raspagens sucessivas, até que ela, nua, mostrasse seu corpo original: pinho-de-riga marfim com sinuosas listras marrom.

               Nós. Casas. Vão-nos pintando pela vida afora até que memória não mais existe do nosso corpo original. O rosto? Perdido. Máscara de palavras. Quem somos? Não sabemos. Para saber é preciso esquecer, desaperender.

               Segunda aranha, segundo fio, Bernardo Soares: nós só vemos aquilo que somos. Ingênuos, pensamos que os olhos são puros, dignos de confiança, que eles realmente veem as coisas tais como são. Puro engano. Os olhos são pintores: pintam o mundo de fora com as cores que moram dentro deles. Olho luminoso vê mundo colorido; olho trevoso vê mundo negro.

               Nem Deus escapou. Mistério tão grande que ninguém jamais viu, e até se interditou aos homens fazer sobre ele qualquer exercício de pintura, segundo mandamento – “Não farás para ti imagem” -, tendo sido proibido até, com pena de morte, que seu nome fosse pronunciado. Mas os homens desobedeceram. Desandaram a pintar o grande mistério como quem pinta casa. E, a cada nova demão de tinta, mais o mistério se parecia com a cara daqueles que o pintavam. Até que o mistério desapareceu, sumiu, foi esquecido, enterrado sob as montanhas de palavras que os homens empilharam sobre o vazio. Cada um pintou Deus do seu jeito.

Disse Angelus Silesius: 
               O olho através do qual Deus me vê é o mesmo através do qual eu o vejo. E assim Deus virou vingador que administra um inferno, inimigo da vida que ordena a morte, eunuco que ordena a abstinência, juiz que condena, carrasco que mata, banqueiro que executa débitos, inquisidor que acende fogueiras, guerreiro que mata os inimigos, igualzinho aos pintores que o pintaram.
               E aqui estamos nós diante desse mural milenar gigantesco, onde foram pintados rostos que os religiosos dizem ser rostos de Deus. Cruz-credo. Exorcizo. Deus não pode ser assim tão feio. Deus tem de ser bonito. Feio é o cramulhão, o cão, o coisa-ruim, o demo. Retratos de quem pintou, isso sim. Menos que caricatura. Caricatura tem parecença. Máscaras. Ídolos. Para se voltar a Deus, é preciso esquecer, esquecer muito, desaprender o aprendido, raspar a tinta…

               Os que não perderam a memória do mistério se horrorizaram diante dessa ousadia humana. Denunciaram. Houve um que gritou que Deus está morto. claro. Ele não conseguia encontrá-lo naquele quarto de horrores. Gritou que nós éramos assassinos de Deus. Foi acusado de ateu. Mas o que ele queria, de verdade, era quebrar todas aquelas máscaras para poder de novo contemplar o mistério infinito.

               Outro que fez isso foi Jesus. “Ouvistes o que foi dito aos antigos; eu porém vos digo…” O deus pintado nas paredes do templo não combinava com o Deus que Jesus via. O deus sobre o qual ele falava era horrível às pessoas boas e defensoras dos bons costumes. Dizia que as meretrizes entrariam no reino à frente dos religiosos. Que os beatos eram sepulcros caiados: por fora brancura, por dentro fedor. Que o amor vale mais que a lei. Que as crianças são mais divinas que os adultos. Que Deus não precisa de lugares sagrados – cada ser humano é um altar, onde quer que esteja.

               E ele fazia isso de forma mansa. Contava estórias. A uma delas, os pintores de parede deram o nome de Parábola do Filho Pródigo. é sobre um pai e dois filhos. Um deles, o mais velho, todo certo, de acordo com o figurino, cumpridor de todos os deveres, trabalhador.

               O outro, mais novo, malandro, gastador irresponsável. Pegou a sua parte da herança adiantada e se mandou pelo mundo, caindo na farra e gastando tudo. Acabou o dinheiro, veio a fome, foi tomar conta de porcos. Aí se lembrou da casa paterna e pensou que lá os trabalhadores passavam melhor do que ele. Imaginou que o pai bem que poderia aceitá-lo como trabalhador, já que não merecia mais ser tido como filho. Voltou. O pai o viu de longe. Saiu correndo ao seu encontro, abraçou-o e ordenou uma grande festa, com música e churrasco. Para os pintores de parede, a estória poderia ter terminado aqui. Boa estória para exortar os pecadores a se arrepender. Deus perdoa sempre. Mas não é nada disso. Tem a parte do irmão mais velho. Voltou do trabalho, ouviu a música, sentiu o cheiro de churrasco, ficou sabendo do que acontecia, ficou furioso com o pai, ofendido, e com razão. Seu pai não fazia distinção entre credores e devedores. Fosse o pai como um confessor e o filho gastador teria, pelo menos, de cumprir uma penitência.

               A parábola termina num diálogo entre o pai e o filho justo. Mas o suspense se resolve se entendermos as conversas havidas entre eles. Disse o filho mais moço: – Pai, peguei o dinheiro adiantado e gastei tudo. Eu sou devedor, tu és credor. Respondeu-lhe o pai: – Meu filho, eu não somos débitos. Disse o mais velho: – Pai, trabalhei duro, não recebi meus salários, não recebi minhas férias e jamais me deste um cabrito para me alegrar com os meus amigos. Eu sou credor, tu és devedor. Respondeu-lhe o pai: – Meu filho, eu não somo créditos.

               Os dois filhos eram iguais um ao outro, iguais a nós: somavam débitos e créditos. O pai era diferente. Jesus pinta um rosto de Deus que a sabedoria humana não pode entender. Ele não faz contabilidade. Não soma nem virtudes nem pecados. Assim é o amor. Não tem porquês. Sem-razões. Ama porque ama. Não faz contabilidade nem do mal nem do bem. Com um Deus assim, o universo fica mais manso. E os medos se vão. Nome certo para a párábola: “Um pai que não sabe somar”. Ou: “Um pai que não tem memória”…




Essa mensagem de Ed René Kivitz fala exatamente sobre isso:



Deus, créditos e débitos, por Ed René Kivitz, no domingo 02 de Junho de 2013. -Lucas 15.11-32

quinta-feira, 1 de maio de 2014

TEOLOGIA MORAL DA MANGA

Por Rubem Alves

O velho caipira, com cara de amigo, que encontrei num Banco, estava esperando para ser atendido. Ele ia abrir uma conta. Começo de um novo ano... Novas perspectivas... E, como não podia deixar de ser, também começou ali um daqueles papos de fila de banco. Contas, décimo terceiro que desapareceu, problemas do Brasil, tsunami... Será que vai chover?

Mas, em determinado momento, a conversa tomou um rumo:
"- Qual será, então, o maior problema do Brasil para ser resolvido? E o representante rural, nosso querido "Mazzaropi da modernidade falou com um tom sério demais para aquele dia:
" - O maior problema do Brasil é que sobra muita manga!"
Tentei entender a teoria... Fez-se um silêncio e ele continuou:
" - O senhor já viu como sobra manga hoje debaixo das árvores? Já percebeu como se desperdiça manga? “
- "Sim... Creio que todos já percebemos isto... Onde tem pé de manga, tem sobrado manga...”
E aí ele continuou:

" - Num país onde mendigo passa fome ao lado de um pé de manga... Isso é um absurdo! Num país que sobra manga, tem pouca criança. Se tiver pouca criança, as casas são vazias... Ou as crianças que tem já foram educadas para acreditar que só "ice cream" e jujuba são sobremesas gostosas. Boa é criança que come manga e deixa escorrer o caldo na roupa... É sinal que a mãe vai lavar, vai dar bronca, vai se preocupar com o filho. Se for filho, tem pai... Se tiver pai e manga de sobremesa, é por que a família é pobre... Se for pobre, o pai tem que ser trabalhador... Se for trabalhador, tem que ser honesto... Se for honesto, sabe conversar... Se souber conversar, os filhos vão compreender que refeição feliz tem manga, que é comida de criança pobre e que brinca e sobe em árvore... Se subir em árvore, é por que tem passarinho que canta e espaço para a árvore crescer e para fazer sombra... Se tiver sombra, tem um banco de madeira para o pai chegar do trabalho e descansar...

Quem descansa no banco, depois do trabalho, embaixo da árvore, na sombra, comendo manga, é porque toca viola... E, com certeza, tá com o pé na grama... Quem pisa no chão e toca música tem casa feliz... Quem é feliz e canta com o violeiro, sabe rezar... Quem sabe rezar sabe amar... Quem ama, se dedica... Quem se dedica, ama, reza, canta e come manga, tem coração simples... Quem tem coração assim, louva a Deus. Quem louva a Deus, não tem medo... Nada faltará porque tem fé... Se tiver fé em Deus, vê na manga a providência divina... Come a manga, faz doce, faz suco e não deixa a manga sobrar... Se não sobra manga, tá todo mundo ocupado, de barriga cheia e feliz. Quem é feliz.... não reclama da vida em fila do banco... "
Daí, fez-se um silêncio... 

quinta-feira, 14 de março de 2013

Lâmpadas e inteligências

Por Rubem Alves

É sempre assim: os pensamentos que eu penso de maneira deliberada, metódica e consciente são sempre comuns e banais. Eles nunca me surpreendem. Os pensamentos que me surpreendem são aqueles que aparecem repentinamente, sem que eu os tivesse chamado. Esses pensamentos são livres, vem quando querem, e só aparecem nos momentos de vagabundagem. 

Pois, num desses momentos de vagabundagem, um pensamento me apareceu que fez uma ligação metafórica entre lâmpadas e inteligências que nunca me havia passado pela cabeça. Tratei, então, de seguir a trilha. 

As lâmpadas servem para iluminar. Para isso são dotadas de potências de iluminação diferentes. Há lâmpadas de 60 watts, de 100 watts, de 150 watts, etc. Qual é a melhor lâmpada? Parece que as de 150 watts são as melhores porque iluminam mais. Também as inteligências servem para iluminar. Tanto assim que se diz “tive uma ideia luminosa!” E nos gibis, para dizer que um personagem teve uma boa ideia o desenhista desenha uma lâmpada acesa sobre a sua cabeça. E também as inteligências, à semelhança das lâmpadas, têm potências diferentes. 

Os psicólogos inventaram testes para atribuir números às inteligências. A esses números deram o nome de QI, coeficiente de inteligência. Segundo as mensurações dos psicólogos há QIs de 100, de 150, de 200... Ah! Uma pessoa com QI 200 deve ser maravilhosa! Porque, como todo mundo sabe, inteligência é coisa muito boa. Todo pai quer ter filho inteligente. Mas as lâmpadas não são objetos de contemplação. Não se fica olhando para elas. Olhamos para aquilo que elas iluminam. Uma lâmpada de 150 watts pode iluminar o rosto contorcido de um homem numa câmara de torturas. E uma lâmpada de 60 watts pode iluminar uma mãe dando de mamar ao filho. As lâmpadas valem pelas cenas que iluminam. As inteligências valem pelas cenas que iluminam. 

Há inteligências de QI 200 que só iluminam esgotos e cemitérios. E como ficam bem iluminados os esgotos e os cemitérios! E há inteligências modestas, como se fossem nada mais que a chama de uma vela - que iluminam o rosto de crianças e jardins! A inteligência pode estar a serviço da morte ou da vida. E a inteligência, pobrezinha, não tem o poder para decidir o que iluminar. Ela é mandada. Só lhe compete obedecer. As ordens vêm de outro lugar. Do coração. Se o coração tem gostos suínos, a inteligência iluminará chiqueiros. Se o coração gosta de crianças e jardins, a inteligência iluminará crianças e jardins. Essa é a razão por que é mais importante educar o coração do que fazer musculação na inteligência. Eu prefiro as inteligências que iluminam a vida, por modestas que sejam.

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Vi esse texto no podcast abaixo, de Luciano Pires -  Café Brasil


terça-feira, 25 de dezembro de 2012

A mensagem do Natal que nem todos perceberam


Por Rubem Alves
A mensagem do Natal que nem todos perceberam

O Verbo se fez carne. Deus se revelou na história.

1. Na encarnação, o tempo deixa de ser uma abstração e passa a ser uma dimensão de Deus.

O palco dos acontecimentos, a arena da história não é mais no céu, mas na terra. A vida acontece aqui e agora. Deus veio lutar pela vida entre nós. Ele não mais arbitra do alto, mas se empenha pela vida de dentro da história.

Na encarnação, o conceito de um Deus atemporal, distante de nós, que não experimenta passado, presente, futuro se esvazia. Na encarnação Deus quer experimentar o tempo.

Em Mateus 2.19 – precisa esperar que Herodes morra para voltar do Egito a Nazaré.
Em Mateus 4.2: Experimenta o desgaste de passar 40 dias e 40 noites sem comer.
Em Lucas 2.52: Aos doze anos, Ele ia crescendo em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens.
Em João 2.4: Ele diz a sua mãe: “A minha hora ainda não chegou”.

Deus no tempo é o Deus compassivo.
Deus no tempo é o Deus amigo.
Deus no tempo é o Deus sábio.

Deus no tempo só conhecemos a partir de Jesus

2. Na encarnação, os espaços perdem gradações, hierarquias – ele nasce numa manjedoura.

Qual seria o lugar mais sagrado? Onde repousava Deus? Em algum nicho? Em alguma sacristia? Em algum altar? Não, ele pode ser encontrado uma manjedoura.

Ele nascer numa manjedoura é metáfora para nascer em corações menos valorizados. Em vidas menos avaliadas.

Tanto que

Em Mateus 8. 7: Ele agora quer ir até a casa de um Centurião.
Em Lucas 10.38: Ele quer ir para casa de Marta e Maria.
Em Lucas 14: Ele vai comer na casa de um fariseu importante.
Em Lucas 19.1: Ele pede para se hospedar na casa de um rico publicano chamado Zaqueu.
Em João 12.2: Na casa de Lázaro, um jantar é preparado para ele.

Se ele nasceu em um lugar tão desprestigiado, com certeza nascerá também no coração da mulher que ninguém daria nada por ela ou do homem que ninguém quer bem.

3. Na encarnação, as aparições de Deus perderam o poder de intimidar. Deus é revelado como afirmador da nossa humanidade.

Nas narrativas do nascimento de Jesus, há pelo menos 4 “não tenha medo”:

Lucas 1.13: “Não tenha medo, Zacarias.
Mateus 1.20: José, não tenha medo de receber Maria
Lucas 1.30: Não tenha medo, Maria
Lucas 2.10: Não tenham medo, pastores.

Glória a Deus nas alturas e paz na terra a homens e mulheres que ele quer bem.

Deus visita a humanidade não porque está enraivecido, mas porque deseja despejar paz sobre homens e mulheres.

Fica claro que o Deus de cara austera não passava de uma construção religiosa, visando provocar submissão pelo medo.

Nele está o sorriso.
Dos lábios divinos vem afirmação: Paz na terra.

Agora podemos celebrar a vida. Deus é por nós.

No pontilhar do violeiro que
Nos poemas dos poetas
Nas confidências dos amigos
Nos gracejos dos humoristas
Nas conversas ao pé do fogo
Nas brincadeiras dos adolescentes
Na mesa posta para celebrar um belo jantar

Deus é a favor da vida.
Ele se alegra com nossa alegria
Ele festeja nossa felicidade.
Ele aposta em nossa leveza.
Ele faz de tudo para aliviar nossa culpa.
Ele não mede, não contabiliza, seus atos de bondade.
Ele não lança em rosto o bem que nos fez.

4. Na encarnação, a primeira revelação real que temos de Deus vem no rosto de um menino.

Não mais um rei, não mais um juiz, não mais um general, não mais um esposo – Ele quer que guardemos essa primeira imagem. Quero que fiquemos com o rosto de um menino na retina na construção da nossa percepção de Deus.

Isaías 9.6: Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, e o governo está sobre os seus ombros. E ele será chamado Maravilhoso, Conselheiro, Deus Poderoso, Pai Eterno, Príncipe da Paz.

“E os contadores de estórias nos disseram que ele [Jesus] gostava de crianças. Não queria que elas ficassem adultas. E aos já crescidos avisava que não se deixassem de ser como eram jamais veriam o reino dos céus. Teriam de voltar a ser crianças. Nicodemos se atrapalhou. Era homem adulto, respeitável, levava as coisas a sério, ao pé da letra, e pensou que Jesus falava de obstetrícia. Ao que ele retrucou: “Não é obstetrícia, Nicodemos, é o vento. O vento sopra...” E ele deve ter ficado mais confuso ainda. As crianças veem coisas que os adultos não podem ver”.