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"...Enquanto ensinarmos que o mundo é um lugar a ser evitado, que as mazelas humanas são fruto da ausência de Deus, que Deus não ouve os pecadores, que só a igreja evangélica é que detém os "diretos autorais" da salvação, que ser forte e inabalável é sinônimo de fé e que ser pecador é ser inimigo de Deus então ainda não entendemos o plano da salvação e o evangelho de cristo rebaixado apenas á mais uma religião...."
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segunda-feira, 22 de junho de 2015

O ataque aos pastores

O ataque aos pastores
Ricardo Gondim
Clint Eastwood produziu – e dirigiu – alguns filmes densos. Os que lidam com o abuso de crianças, especialmente, são inquietantes. Gostei da trama de A Troca - “Changeling”. O filme é baseado em fatos reais. Um garoto desapareceu enquanto a mãe, divorciada, trabalhava algumas horas extras em um dia de sábado. Para reencontrar o filho, Christine – Angelina Jolie – enfrenta sozinha a corrupta máquina policial de Los Angeles; ainda por cima tem de manter o emprego. Sua angústia contagia. A estrutura perversa de um departamento de polícia carcomido por politicagem parece monumental, intransponível.
O pastor presbiteriano, Gustav Briegleb – John Malkovich -, que já se vinha se manifestando contra a violência policial, une-se a Christine. A militância do reverendo Briegleb encanta por sua ética. Ao longo do filme, o pastor é destemido e persistente. A causa de mulher e do seu filho se tornam sua causa. Obviamente, no melhor estilo de Hollywood, o homem ajudar a recuperar o menino e a desmontar a farsa que dominava o gabinete do xerife. Quando apareceu o “The End”, e projetaram as explicações sobre os desdobramentos da cooperação entre o pastor e a mãe, falei quase em voz alta: Quando crescer, quero ser igual a esse pastor. A atuação do reverendo Briegleb havia desencadeado mudanças profundas nas leis da cidade – sua obstinação ainda salvaria pessoas que nem tinham nascido.
Ser pastor – católico romano ou protestante – tornou-se complicado. O clero, principalmente o associado ao movimento evangélico, passou a ser descrito como oportunista, incitador de ódio e aproveitador da ignorância popular. A generalização atinge muita gente que não tem nada a ver com os mega negócios que movimentam o neopentecostalismo. Não me vejo alvo da guerrilha verbal que os próprios neopentecostais começaram. Não quero precisar mostrar, o tempo todo, que nem todo os pastores merecem a vala comum dos patifes. A credibilidade de outros sofre com a mesma suspeita, e isso é ruim.
Nem todo o clero desempenha o papel de baby-sitter de crentes ávidos por uma “mãozinha” celestial. Ser ministro do evangelho não significa que alguém aceitou a função de carimbador de vistos para o céu. A quem não sabe, informo: é possível encontrar cristãos em movimentos populares. Conheço gente que marcha, não nos carnavais fora de época que se pretendem por Jesus, mas reivindicando reforma agrária. Há bons crentes – católicos e protestantes – enfronhados em militância social. Admito que muitos pastores – com certeza ocupados em azeitar a máquina religiosa – nunca abraçarão causas sociais. Fome e sede de justiça não dão fama e poucos vão dar a cara a bater na defesa de pessoas discriminadas e marginalizadas.
O momento vem sendo tomado por pastores famosos, especialistas em questiúnculas sobre doutrina, dogma. Eles se alastram e ganham espaço devido ao empenho de legislarem sobre moralismos e por suscitarem ódio e intolerância. O resultado trágico é que o testemunho cristão virou piada, deboche, escárnio.
Acredito que esse grupo conservador – poderosíssimo – tende a recrudescer em sua obstinação dogmática e obscurantista. Ele continuará a repetir fórmulas desgastadas, propagando que a fé cristã é única em resgatar as pessoas do inferno medieval e de garantir um céu de delícias. Como cristão proponho um caminho diverso. O tempo, os recursos financeiros e a mobilização de tanta gente crente não podem ser desperdiçados. É necessário que progressistas se manifestem e afirmem que a função da igreja consiste em resgatar a vida, protegendo os indefesos, seja na opressão do mercado, no preconceito de gênero e até na frieza eclesiástica. Espero que chegamos ao fundo do poço logo. E daí, mais evangélicos comecem a repensar suas premissas teológicas fundamentalistas. O ônus de mostrar relevância está com a igreja. Talvez o atual desgaste não sufoque, mas ajude a termos mais ícones como Martin Luther King e Dorothy Stang.
Como pastor pentecostal, procuro o caminho estreito. Desde sempre denunciei que a teologia da prosperidade não é desvio da mensagem de Jesus mas uma perversidade teológica. Em nome de uma divindade “que funciona”  líderes ficaram ricos – alguns milionários e pelo menos um, bilionário. Jamais calei diante da instrumentalização do que considero cristão para fins políticos. Parei de aceitar o avivamento de uma agenda pretensamente conservadora, mas que é em sua essência, demagógico e hipócrita.
Como cuidei basicamente de igrejas urbanas, também preciso fazer um mea culpa. Confesso: perdi tempo com a máquina eclesiástica. Me deixei absorver por programações irrelevantes devido à vaidade de falar em determinadas conferências. Em nome da verdade, defendi teologias desconexas da existência. Fiz promessas irreais sem levar em conta a aspereza da história. Discuti ideias estéreis. Corri em busca de uma glória diminuta. Entreguei-me de corpo e alma à oração, fiz vigílias, jejuei. Ralei os joelhos em busca de uma espiritualidade eficiente. Acreditei que a maturidade humana aconteceria pelo caminho do pieguismo. (Ledo engano; foram meus companheiros de oração que se levantaram contra mim). Conto os anos e constato que o meu futuro ficou mais curto que o meu passado. Indago a mim mesmo: Qual a pertinência do meu esforço? O meu legado terá fôlego? Se só agora noto que o tempo é uma riqueza não renovável, me resta lamentar.
Com o achincalhe que vários líderes religiosos passam, aconselho aos pastores que abram mão de egolatrias tolas. O fascínio por títulos, riqueza, ostentação e poder político terão consequências ruins sobre vocês mesmos. Não é apenas tolice brincar de importante em nome de Deus mas, trágico. O caminho estreito continua possível. Por mais que pareça incrível, alguns já optaram por ele. Basta assistir mais uma vez ao filme do Clint Eastwood e ler a biografia de Francisco de Assis.
Soli Deo Gloria

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Deus não existe, Ele é

Ricardo Gondim
O verbo existir pertence a coisas e pessoas. Deus não se reduz a substantivo e sequer a uma pessoa. Paul Tillich trabalhou o conceito de que “Deus está sempre para além de Deus”. Isto é, todas as vezes que Deus couber em qualquer definição, nos colocamos diante de um ídolo. Os esboços e as imagens mentais que a palavra “Deus” suscitar serão insuficientes para intuir quem Ele é.
Por isso precisamos de inúmeras – e variadas – metáforas e antropomorfismos. Carecemos de um sem número de alegorias para dar conta de descrevê-lo. Muitas vezes, vestir em Deus atributos humanos como misericórdia, indignação, amor, impaciência ou cordialidade acaba criando paradoxos. Amor e ira – comportamentos humanos – parecem não se juntarem em um só indivíduo. Misericórdia e justiça, segundo pensamos, anulam-se mutuamente. Simplesmente não esgotamos o mistério do grande Outro com as imagens que criamos a seu respeito. A Bíblia está repleta de descrições de Deus que, colocadas lado a lado, acabam nem fazendo muito sentido. Por isso, quem deseja catalogar, de forma coerente, o que os antigos falaram a respeito de Deus, perde-se nas diversas narrativas.
Isaías 46. 9-10 registra: “Lembrem-se das coisas passadas desde tempos remotos: que eu sou Deus e não há outro… que desde o princípio anuncio o que há de acontecer e desde a antiguidade, as coisas que ainda não sucederam. E digo: o meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade”.  No mesmo livro de Isaías [66.4], Deus expressa frustração pela desobediência do povo: “Por isso também escolherei um duro tratamento para eles, e trarei sobre eles o que eles temem. Pois eu chamei, e ninguém respondeu, falei, e ninguém deu ouvidos. Fizeram o mal diante de mim e escolheram o que me desagrada”.
A antiguidade concebia o sobrenatural como uma dimensão que ficava além – ou acima – deste mundo visível. Eles pensavam que Deus se mantinha sentado em um “alto e soberano trono”, “envolto em fumaça” e de lá fazia o que bem entendia. Com a revolução da astronomia, desde Galileu Galilei, ficou evidente que o sobrenatural não se situa acima.  O conceito de “um céu lá em cima” não cabe mais.
John S. Erigena (810-877), um pensador deveras original para a época em que viveu, expressou em poesia que Deus não vive em alguma sala remota do universo. Deus está entranhado na realidade.
Oh, tu que és perpétua Essência das coisas
Além do espaço e do tempo e ainda dentro deles,
Oh, tu que transcendes e penetras todas as coisas,
Manifesta-te a nós como te sentimos,
Buscando-te nos escuros lugares de nossa ignorância.
O simples uso do substantivo “Deus” o apequena. Falar de Deus como um sujeito o reduz. Se sou obrigado a pronunciar “Deus” o faço para indicar a teimosia da minha esperança. Vivo em “Deus” pelo sentido de beleza, solidariedade e sede de justiça que sua Presença me inspira. Devido a essa Presença, espero quando não há nenhuma razão para esperar, rio quando o absurdo do sorriso parece um escárnio e choro quando o deboche se torna norma. Só assim vivo em Deus.
Onde a transcendência de Deus se manifesta? Certamente na vida. Nunca nas regiões celestiais. A história, com todas a sua crueldade e beleza, e a vida com toda a sua ambiguidade, são o palco onde o eterno transcende. Ele [Ela] é a atualização do futuro, a negação do mágico, o clamor renitente por justiça, a corporificação da amizade, a solidariedade com o que sofre, o não radical a tudo o que conspira contra a vida.
Deus não está contido nas definições que eu – ou qualquer pessoa – possa dar. Deus reside na possibilidade do milagre, no desabrochar do inédito, nas iniciativas amorosas e na irredutível loucura de crer que o amanhã trará o insólito. Apelo para Rubem Alves:
Se a ação consiste na parteira do futuro, então a atividade humana pode acrescentar o novo ao mundo. Pode constituir, com efeito, um ato de criação. A graça de Deus, ao invés de tornar a criatividade humana supérflua ou impossível, é a política que a torna possível e necessária.
Tal se dá porque no contexto da política de libertação humana o homem encontra um Deus que continua aberto, que ainda não chegou, que está voltado para a atividade humana e é por ela auxiliado. Deus precisa do homem para a criação de seu futuro. “Se Deus não precisasse do homem”, assinala Friedmann, “se o homem fosse simplesmente dependente e nada mais, não haveria sentido para a vida. O mundo não é um esporte divino, e sim, um destino divino”. Assim, a criação de um novo futuro faz parte do pacto de fidelidade mútua para com a libertação humana, unindo Deus e o homem.
O sol da justiça brilhará aqui, no chão que pisamos. No tempo – que nos consome e eterniza – se cumprirá a promessa de que ele vai criar novos céus e nova terra. O tabernáculo de Deus se estabelecerá na praça de uma cidade. Vivemos e existimos rodeados e perpassados pelo eterno. Carecemos apenas de olhos para ver.
Soli Deo Gloria

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Nem tudo são flores no movimento evangélico

Ricardo Gondim
Entrei em um salão de snooker sentindo náuseas. Uma vertigem diferente invadiu meu corpo. As mesas verdes espalhadas pelo largo espaço me lembravam um necrotério. Eu estava na Inglaterra.
Por que um necrotério? Eu explico. Aquele salão havia sido a nave de uma igreja. Porém, a congregação definhou através dos anos e o prédio precisou ser vendido. O pastor que me levou na insólita visita relatou que na Inglaterra um grande número de igrejas, iguais aquela, minguaram. Devido aos altos custos de manutenção, só restou ao remanescente negociá-las. Os maiores compradores, segundo ele, são muçulmanos, donos de lojas de antiguidades e bares e boates. Duro para um pastor ver um púlpito transformado em bar. Triste ler, entre bêbados, inscrições de textos bíblicos talhados em pedra - Pregamos a Cristo crucificado – O sangue Cristo nos purifica de todo pecado.
Procurei voltar no tempo. Lembrei: aquela igreja, fundada durante o avivamento wesleyano, já tinha experimentado vitalidade espiritual. As placas de granito e mármore, ainda fixadas nas paredes, ostentavam o nome de pastores ilustres que pregaram no altar – agora, balcão de servir whisky. Eu estava ali, em um sábado, e o espaço estava cheio de homens vazios. Perguntei a mim mesmo: o que matou essa congregação? Em meu solilóquio, pensei no Brasil.
Semelhante ao avivamento wesleyano, o movimento evangélico cresce com taxas surpreendentes. Não há como negar a efervescência religiosa que toma o país. As periferias das grandes cidades estão apinhadas de templos evangélicos, todos repletos. Grandes denominações compram estações de rádio e televisão. Cantores evangélicos gravam e vendem mais que cantores seculares. Publicam-se centenas de revistas e incontáveis títulos de livros. Livrarias comercializam bugigangas religiosas. Por outro lado, talvez bem diferente do que aconteceu na Inglaterra, o desgaste do movimento é assombroso. Entre os formadores de opinião – jornalistas, blogueiros, acadêmicos – a credibilidade ética fica na redondeza do zero.
Essa realidade produz desdobramentos preocupantes. Se, com toda a rigidez doutrinária do protestantismo inglês, ética do metodismo e a própria disciplina anglo-saxônica aquelas igrejas morreram, o mesmo não pode acontecer no Brasil? Infelizmente, sim. Insisto: as razões que implodiram inúmeras congregações européias são diferentes, óbvio. Lá, a reação anti-clerical alicerçada na filosofia naturalista apressou os processos de secularização. Universidades fomentaram enorme antipatia a tudo o que não cabia no esquema lógico e racional. Sem penetração popular, o liberalismo teológico ainda procurou avenidas de diálogo, mas não foi muito longe. No Brasil, o que ameaça o movimento evangélico? A própria estrutura teológica e institucional que o sustenta e expande.
Quem visita uma evangélica no Brasil tem a oportunidade de perceber o culto a uma divindade bem tribal. O Deus paroquial cultuado na maioria das igrejas se molda aos contornos teológicos da comunidade. A divindade ajuda a ascender com upgrade financeiro, com cura e com solução imediata de problemas. Deus não passa de um ajudador celestial, que se acessa e que se conquista, cumprindo obrigações. Devidamente adulado, ele resolve tudo. O divino selvagem fica tão domesticado que o pastor parece ser o único a ter medo: talvez a oferta não cubra as despesas da igreja e os planos de expandir a obra de Deus fiquem comprometidos. Essa habilidade de manejar o divino fomenta uma atitude displicente e descomprometida quanto ao sagrado. O Deus a serviço do povo para lhes cumprir desejos se distancia tanto da tradição judaica, que identificava Javé como fogo consumidor, como da tradição cristã – católica e protestante -, que sempre cantou oAleluia de Hendel em pé.
O tom de voz exigente e determinante dos neo-apóstolos deixa uma dúvida: quem é o senhor de quem? O culto no movimento evangélico é antropocêntrico. Enquanto prevalecem as catarses coletivas com testemunhos mirabolantes de milagre, fica uma pergunta: Deus é mais um estimulante químico? Pastores não se incomodam de transgredir o mandamento de tomar o nome de Deus. Juram falar em seu nome — só para serem contraditos por suas próprias profecias. Os milagres, inflados pela manipulação, revelam falta de reverência. Descaso com o sagrado é faca de dois gumes. Se, por um lado, demonstra a familiaridade do sacerdote, por outro, gera complacência entre o povo.
Complacência e enfado são sinônimos. Acostumado com o Mistério Tremendo, o crente trivializa o divino. O espaço religioso se profana e acaba no mesmo patamar dos encontros corriqueiros, aqueles que podem ser adiados ou não, dependendo das conveniências.
O movimento evangélico mostra pouco cuidado com jargões e clichês. Frases de efeito são copiadas e repetidas sem muita preocupação com seus conteúdos. Algumas, vazias, servem apenas para criar o frenesi ou para demonstrar as certezas do líder. Em alguns redutos, vinhetas repetidas ad nauseum escondem despreparo teológico. Nada como uma frase pronta para legitimar a preguiça. Existe um interesse claro de elevar a temperatura emotiva do culto, mas não de desenvolver senso crítico. Gera-se triunfalismo, mas não se fornecem ferramentas para transformar realidade social. Hannah Arendet, filósofa do século XX, comentou sobre o fato de Eichmann, nazista e braço direito de Hitler, responder com evasivas às interrogações do tribunal de guerra: Clichês, frases feitas, adesões a condutas e códigos de expressão convencionais e padronizados têm a função socialmente reconhecida de nos proteger da realidade, ou seja, da exigência de atenção do pensamento feita por todos os fatos e acontecimentos.
As afirmações tempestivas que infestam o movimento evangélico agem como uma droga pesada. Além de alienar, em cada picada ou cheirada, o narcótico cria mais dependência por dar a sensação de que o próximo efeito será maior do que o anterior.
Quais perspectivas teológicas se desenham no futuro do movimento evangélico? A mistura de meios e fins deve agudizar-se. A ideia de que os fins justificavam os meios já foi devidamente desmerecida – a premissa justifica qualquer comportamento anti-ético. Tomado por um pragmatismo exacerbado, o movimento evangélico tende a confundir o que é meio e o que é  fim.
Grave, não saber se a igreja existe para levantar dinheiro ou se o dinheiro é mero instrumento de continuar com a igreja. A música cultua ou diverte? Publicam-se livros como negócio ou para divulgar ideias? Os programas de televisão visam popularizar determinado ministério ou proclamar uma mensagem? A resposta deixou de ser fácil. Jesus não virou a mesa dos cambistas por discordar do serviço que eles prestavam aos peregrinos que adoravam no templo. Jesus detectou que ali, meios e os fins se tornaram confusos. Já não se discernia com clareza se o templo existia para mercadejar ou se o negócio ajudava o culto. A obsessão por dinheiro, a corrida desenfreada por fama e a paixão por títulos escancaram realidades complicas: muitas igrejas já não sabem se existem para faturar ou se faturam para existir; não gastam energia em busca de um auditório que os ouça; agora, procuram uma mensagem que segure o auditório. A confusão de meios e fins já começou e o processo de implosão do movimento fica próximo. Vale tudo para manter o show da fé.
A fato de crescer, numericamente, não imuniza o movimento evangélico dos perigos que o rondam. O contrário é mais temerário. Quanto mais um movimento cresce, mais vulnerável à cultura que o rodeia; e quanto mais parecido com cultura, menos ousado em tentar transformá-la. Esses pequenos desvios podem se tornar abismos amanhã. Imaginar que um imenso templo pode virar um bar de snooker pode parecer exagero. Todavia, eu testemunhei na Inglaterra: pesadelos acontecem.
Soli Deo Gloria

terça-feira, 1 de julho de 2014

Salvemos a próxima geração


Preocupo-me com os futuros pastores. Quase diariamente recebo pedidos de socorro de seminaristas já confusos antes de começarem suas atividades ministeriais. Não conseguem se encaixar nos modelos mais populares de serviço cristão, não sabem quais sendas trilharão.

O contexto oferece poucas opções ao jovem pastor. Caso pertença a uma grande denominação, pode ambicionar as estruturas de poder. Sabendo manter-se politicamente correto, conquistará estabilidade financeira. Se for de uma denominação pequena, se lançará numa feira livre religiosa. O mercado religioso é inclemente; nele impera a máxima “quem não tem competência não se estabelece”. Sem o amparo de uma grande denominação, terá de fazer sua igreja acontecer valendo-se de carisma e empreendedorismo. Lamentavelmente, muitos sucumbem, partindo para a manipulação inescrupulosa do sagrado; outros se concentram em estratégias de marketing, e há os que importam modelos de igrejas estrangeiras bem-sucedidas.

Cabe aos seminários o desafio de nortear futuros pastores; reitores e professores precisam questionar seus modelos; e mais: discutir os propósitos do ensino e saber se respondem aos desafios da seara.

Atrevo-me a oferecer algumas recomendações aos docentes que formam novos ministros.

Aconselho que alguns livros passem a ser obrigatórios. Quem lê romance capta, mesmo em narrativas fictícias, a imensidão humana. Para se inteirar da cultura brasileira, todo aluno deveria ler O Quinze, de Rachel de Queiroz, e Fogo Morto, de José Lins do Rego; para conhecer as raízes da pátria, recomendoO Cortiço, de Aluísio de Azevedo. Todos colariam grau apreciando Machado de Assis e seu “Eclesiastes”: Memórias Póstumas de Brás Cubas.

As grades curriculares deveriam incluir poesia. Cada seminarista aprenderia a esboçar alguns poemas, para não se contentar em apregoar a verdade, mas enaltecê-la com graça. Um poeta não se satisfaz em ser coerente; quer dar ritmo e formosura à sua fala. O pastor não deve buscar incutir em suas ovelhas apenas valores morais, intelectuais e espirituais. Ele deve suscitar admiração e espanto diante da majestade divina. Sugiro que os professores omitam o nome dos grandes poetas. Sem preconceitos, seus estudantes aprenderiam a gostar de Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Adélia Prado e outros.

Aconselho o retorno da meditação bíblica, de aulas em que se leriam as Escrituras em silêncio. Aulas com o objetivo de inocular nos alunos o amor pela Palavra sem terem de tirar verdades práticas para um próximo sermão. Eles descobririam a riqueza de aquietar a alma e ouvir a inaudível bruma com a voz do Espírito Santo. Os professores incentivariam que suas classes se familiarizassem com os pais do deserto. Aconteceria uma revolução, pois teríamos preces menos utilitárias e jejuns sem tentar coagir a Deus.

Sugiro que os seminaristas façam estágio em três instituições: Hospital Infantil do Câncer, Associação de Paralisia Cerebral do Brasil e Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais. A única exigência seria que não se envolvessem com burocracias, mas estivessem em contato com as crianças. Depois, os professores pediriam uma monografia sobre cura divina. Há pouco, ouvi um pastor prometer que todos seriam curados de suas doenças. Abismei-me com sua inconseqüência. Ele provavelmente nunca conviveu com pais que lutam com deficiências genéticas.

Outra idéia, é que se exija dos alunos não viverem em países do Primeiro Mundo sem antes morarem, por pelo menos dois anos, em regiões de extrema pobreza. Sugiro que se mudem para comunidades ribeirinhas do Amazonas, Sertão Nordestino ou favelas de alguma metrópole. Se alguém se sentisse vocacionado para missões transculturais, antes se obrigaria a morar em um país africano, trabalhando em alguma clínica pública para aidéticos ou num campo de refugiados de guerra. Acredito que essa medida estancaria o enorme fluxo dos que desejam emigrar para países mais abastados alegando um chamado divino.

O cristianismo não precisa advogar tanto a ortodoxia. O mundo já não se interessa pela defesa de verdades, quaisquer que sejam elas. Existe um fastio quanto a dogmatismos — ideológicos ou religiosos. O anseio é por coerência entre discurso e vida.

Importa que líderes cristãos encarnem sua humanidade. Em um mundo sem ternura, precisam-se de homens solidários. Numa época em que a vida perdeu seu valor, necessitam-se de pastores que amem a justiça. Jesus nunca almejou fundar uma igreja liderada por técnicos desprovidos de alma. Ele jamais vislumbrou seu corpo resumido a auditórios lotados, e jamais aceitaria discípulos parecidos com aqueles que conspiraram sua morte.

Os seminários não podem resignar-se a gerar profissionais da religião, mas servos que vivam a fé de maneira íntegra, solidária e justa. Se quisermos salvar a próxima geração de pastores, uma nova reforma precisa acontecer imediatamente. E que comece pelos seminários.

Soli Deo Gloria.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Mensagem: A resposta de Deus para o complexo de inferioridade

Complexo de inferioridade
Linda mensagem de Ricardo Gondim.


sexta-feira, 25 de abril de 2014

A vida é assim




segunda-feira, 24 de março de 2014

Carência de profetas

Ricardo Gondim

Reconheço: existem diversas pessoas sérias entre os crentes. Admito: mais de sete mil profetas não se dobraram a Baal. Não desprezo o testemunho daqueles que me precederam e honraram a fé. Dados os devidos descontos, impossível não admitir o colapso do que se popularizou como movimento evangélico.

Como calar diante do avanço de vigaristas e charlatões? Quantos vão manter um silêncio obsequioso diante das promessas irresponsáveis de cura, prosperidade financeira, solução de problemas conjugais e sucesso empresarial? Não é possível aguentar três minutos de programa de rádio ou de televisão. Náuseas acontecem  diante da postura arrogante de falsos profetas que oscilam entre camelôs religiosos e doces professores de Bíblia.

Não dá para lidar com a falta de responsabilidade humana de grupos fundamentalistas quando celebram desastres naturais como sinais inequívocos do castigo de Deus sobre o pecado. A lógica do quanto melhor, pior só revela quão egocêntrico e cínico o movimento vem se tornando. Haja estômago para ouvir professores de teologia, forjados em seminários de segunda linha, criticando livros que nunca leram. A maioria dos auto-reconhecidos teólogos evangélicos não conseguem citar duas obras de peso da literatura. Eles discursam na defesa de uma reta doutrina que ainda não completou duzentos anos.

Será que passará impune a intolerância de muitos sacerdotes, que deveriam ser pacientes e benignos? O meigo carpinteiro de Nazaré seria parceiro de abutres prontos para estraçalhar quem tropeçou na vida?

O movimento evangélico corre o risco de se tornar refúgio para incompetentes. Líderes, que jamais conseguiriam sobreviver no mundo empresarial, se ocupam em tornar culpa uma fonte de lucro. Preguiçosos e despreparados, adoram praticar tiro ao alvo, desferindo setas nos já abatido pela vida. Os piores tentam mimetizar comportamentos moralistas do mundo anglo-saxão. Eles copiam as afirmações dos ortodoxos que se pretendem eleitos de Deus e se vendem como especialistas em cerimonialismos e tradições, como se Deus dependesse delas.

Também, não dá para lidar com tanto ufanismo. Falsos Aquiles perambulam pelos corredores eclesiásticos como exemplos de imunidade. Sobram narcisistas na corrida pelos primeiros lugares no Olimpo dos ungidos. Empreitada, projeto ou campanha, que pretende mudar o mundo, não passa de estratégia surrada de movimentar dinheiro. Falsos heróis instumentalizam o povo em nome para viabilizar megalomanias – usam e abusam da boa-fé de quem deseja fazer alguma coisa pela humanidade. A burocracia eclesiástica dilui todo recurso doado. Fortunas acabam sugadas na volúpia do poder. O dízimo suado dos crentes, investido em mais propaganda, só serve para alardear ao mundo como aquele evangelista é especial.

A repetição enfadonha dos chavões enerva. Cansam as frases prontas e os conceitos batidos,  já desprovidos de sentido ou valor. A grande maioria dos púlpitos evangélicos se repete nuua mesmice horrorosa. O culto des-educa. A convivência no ar viciado de quem só visa repetir o que já foi dito, é estupidificante. Os hinos reciclam poesias gastas; os sermões começam e terminam com a promessa de bênção.

Há anos escrevi que andava cansado com o meio evangélico. Na verdade, não estava assim tão cansado, eu procurava denunciar o desgaste de tanta bobagem em nome de Jesus. Depois, para revelar a descida ladeira abaixo do movimento, pedi para não ser classificado como evangélico. Não resta muito o que dizer. Talvez precise insistir em bater na mesma tecla. E repetir: não dá, não dá, não dá. Carecemos de mais profetas.

Soli Deo Gloria

sábado, 8 de fevereiro de 2014

O que acontece quando evangélicos oram

Ricardo Gondim
Evangélicos estrebucharam no exato momento em que a mídia alardeava a eleição do bon vivant, tocador de sax, Bill Clinton. Ravi Zacharias, um indiano evangélico radicado nos Estados Unidos, profetizou que a permissividade moral do novo presidente levaria a nação à bancarrota. Zacharias fracassou no prognóstico: Clinton obteve bons resultados na economia e ainda re-elegeu.
A neopentecostal Valnice Milhomens, precursora da teologia da prosperidade no Brasil, afirmou que Fernando Collor de Melo foi gerado em oração. O primeiro presidente impichado do Brasil teria nascido no colo dos evangélicos. Quando enfrentou Luis Inácio Lula da Silva, Deus teria levantado os crentes para que o caçador de marajás alagoano ganhasse a eleição.
Edir Macedo sugeriu que Lula não passava da encarnação de Satanás (anos depois eles se coligaram). Segundo o dono da Record, o diabo seria um anjo barbado, sem um dedo e de língua presa. A igreja que Macedo preside mobilizou multidões em vigília de oração para que Lula não chegasse aonde chegou.
Na invasão do Iraque, Max Lucado não hesitou em repercutir a enorme maioria evangélica. Durante um prayer breakfast, com George W. Bush presente, pastores de várias denominações abençoaram as tropas invasoras. Assim, com a unção dos evangélicos, uma maciça tempestade de aço avançou com tanques e aviões. Mísseis inteligentes devastaram a antiga Babilônia. Os danos colaterais foram enormes: milhares de mortos, crianças queimadas, homens desmembrados. Nenhum pastor fez mea culpa ou chorou. Pergunto: como algum desses homens consegue citar o Sermão do Monte? Bem-aventurados os pacificadores porque serão chamados filhos de Deus.
A rede de televisão estadunidense MSNBC noticiou que o psicólogo-pedagogo James Dobson, um ultraconservador da direita evangélica, convocou uma reunião de oração para pedir que Deus enviasse um temporal para prejudicar Barack Obama num discurso. A oração deu errado. O tiro saiu pela culatra. Um furacão quase acabou com a convenção dos republicanos.
Qual a correlação entre as narrativas? Simples. Ávidos de poder, homens e mulheres não hesitam em usar a religião como meio de sancionar ambições pessoais ou institucionais. Líderes religiosos perdem, inclusive, o medo de quebrar o terceiro mandamento: Não tomarás o nome de YHWH, teu Deus, em vão, pois YHWH não considera impune aquele que tomar seu nome em vão.
Eles seguem uma lógica: nós somos escolhidos, portanto, podemos acessar o poder de Deus para combater quem julgamos do mal. Se Bush se queixa de ser cristão e diz orar, ele não tem a mínima possibilidade de errar. Pastores não admitem que um homem de Deus seja capaz de capitanear uma política belicista. Mister President cumpre os propósitos eternos do Senhor. Se mortes acontecem, os crentes tiram uma teologia da manga: Deus precisa vez por outra sujar as mãos para cumprir a agenda.
Pronto! Discursos semelhantes justificaram a chacina de Montezuma. Alguns teólogos acreditam que a rapinagem espanhola na América Latina, que exterminou civilizações inteiras, foi necessária para acabar com a idolatria pagã. Quem tem coragem de ser coerente com a predestinação calvinista chega a dizer que Deus estava no controle dos navios negreiros. Para sedimentar a civilização cristã, negros agonizaram no porão de navios imundos porque Deus quis ou deixou acontecer com algum propósito. Homens e mulheres desapareceram anônimos. Feito bichos acorrentados urraram sem que ninguém os ouvisse – e Deus gerenciou todo o horror? Caravelas partiram da península Ibérica com direito a missa e as bênçãos do Papa – tudo para a glória de Deus.
Feitiçaria consiste no esforço de manipular a divindade para que algum objetivo humano se cumpra. Religiosos se valem de suas orações para cooptar Deus porque se consideram dotados de força suficiente para ditar as ações divinas.
Só permaneço cristão porque reconheço que Deus não se deixa manipular por rogos inconsequentes – bons ou perversos – de ninguém. James Dobson, Valnice Milhomens e outros pretensos protagonistas de uma espiritualidade de resultado não têm o poder que imaginam, embora estejam muito bem financeiramente.
Soli Deo Gloria

domingo, 26 de janeiro de 2014

Integridade não religiosa

Ricardo Gondim
Desde a adolescência, organizei a vida a partir de valores da religião. Frequentei e lecionei na escola dominical. Militei em grupos jovens. Me preparei para o exercício pastoral em um seminário. Caminhei pelos bastidores do mundo religioso. Sentei na roda de alguns notórios líderes brasileiros e ianques.
Zeloso, sempre procurei cumprir com as exigências das instituições que participei. Se a igreja não permitia que mulheres cortassem o cabelo, briguei com a minha mulher. Se diziam ser pecado ir ao cinema, para evitar a aparência do mal e mesmo não concordando com a proibição, eu viajava para longe quando queria ver algum filme.
Relevei disparates. Calei diante de incoerências. Dei as costas para hipocrisia. Eu considerava a causa de Cristo importante demais. Para não escandalizar, fiz vista grossa para muita ruindade.
Abracei as instituições como divinas e acabei conivente. Não notei o caminho sinuoso do mercenário. Ingênuo sequer me dei conta dos intencionalmente cobiçosos. Justifiquei tolices. Eu acreditei na sinceridade das pessoas. Cheguei ao ponto justificar um monte de bobagem por achar que havia pureza nas intenções.
Um eureka aconteceu em minha vida. Embora sincero, eu dava volta, sem sair do lugar. Chego a um tempo de vida que algumas reivindicações da religião perdem seu apelo. Depois de inúmeras decepções, deixei de acreditar na inerente pureza religiosa. Notei que quanto mais bagunçada a interioridade (a alma), mais simétrico o exterior (a aparência). Trato a pregação da santidade absoluta como mistificação. Lembro os malabarismos que testemunhei. Quantos líderes falseavam suas inadequações, projetando em pecadilhos, monumentais desvios éticos.
Jesus não conviveu ao lado de gente certinha demais. Ao contrário, o Nazareno evitava e criticava quem pretendia cumprir todas as demandas da lei judaica. Ele chamou austeros sacerdotes de sepulcros caiados; tratou mestres como cegos guiando outros cegos. Os evangelistas do templo conseguiam convertidos, mas Jesus afirmava que eles apenas os condenavam a um inferno duplo. O filho do homem, gostava da companhia dos pecadores. Ele se sentia bem perto dos que assumiam a condição humana. Quando alistou apóstolos não se importou com suas inadequações. Pedro era tempestivo; Tomé, hesitante; João, vingativo; Filipe, lento em compreender; Judas, ladrão. Acostumado com os costumes da sinagoga e com o linguajar dos doutores da Lei, ele não buscou discípulos nesses círculos.
Jesus aceitou que uma mulher de reputação duvidosa derramasse perfume sobre sua cabeça. Elogiou a fé de um centurião romano, adorador de ídolos. ão deixou que apedrejassem uma adúltera. Mostrou-se surpreso com a determinação de uma mãe cananéia. Nos estertores da morte, prometeu o paraíso a um ladrão. Não mediu esforços ou palavras para enaltecer os diferentes.
Santidade nunca significou para ele a simples obediência de normas. Jesus não tratava um ato igual a uma intenção. Adultério não se restringe ao coito; ele questionava os valores que antecediam o sexo e que podiam ou não desembocar em traição.
O ódio residual, que dá ânsia de matar, é mais grave do que o próprio homicídio. Para Jesus, pecado e santidade participam nas dimensões mais profundas da interioridade humana. Caráter tem a ver com valores escondidos nos porões da alma. Integridade depende de como o ser se estrutura às escondidas.
Para Jesus, santidade e integridade se confundem. Aceitar-se sem panacéias e, sem eufemismo, ser inteiro, eis a receita da perfeição. Sombra, falta, inadequação, defeito, luz e bondade precisam ser encarados sem medo.
Deus não requer vidas perfeitinhas. Ele deve saber que a estrutura humana vem do pó. Deus não exige correção absoluta. Para isso, ele teria que converter mulheres e homens em anjos.
Os que vivem a varrer as faltas para debaixo dos tapetes eclesiásticos não têm parte no reino de Deus. As prostitutas, que aprenderam a lidar com suas faltas e defeitos, precedem os sacerdotes bem compostos. O samaritano, que traduziu sua humanidade em gesto de solidariedade, virou o herói da parábola. O tempestivo Pedro recebeu as chaves do Reino de Deus. A mulher, outrora possessa de sete demônios, anunciou a alvissareira notícia da ressurreição.
A lei serviu para mostrar que legalismo não desemboca em humanidade. Integridade equivale ao constante exercício de confrontar as luzes e as sombras que estruturam a alma. Me afasto do moralismo religioso para amadurecer na ética. Fujo do legalismo para recuperar os muitos anos em que corri em círculos. Repenso a espiritualidade porque desejo aprender a viver.
Soli Deo Gloria

domingo, 17 de novembro de 2013

Menos farisaísmos, por favor

As mentiras, ao contrário do que se apregoa, não são todas iguais. Existe mentira de todo tipo: inescrupulosa, malvada, perniciosa, pecaminosa, ingênua. Não se deve esquecer as inofensivas e até as nobres.
O que dizer das mentirinhas amorosas? Aquelas que nascem de lábios apaixonados? Quando o namorado sussurra, seu chamego se colore de um encarnado libidinoso. Em nome do amor, toda e qualquer frase tem força de transformar-se em uma declaração arrebatadora. Esses arroubos não seriam mentira?
Não há como condenar um pai, que mesmo ansioso por descanso, finja disposto a brincar com os filhos. Quem acusa a mãe que lê uma historinha e faz de conta que acreditou nas fadas?
As mentiras que nascem do zêlo também não merecem desprezo. Se ela pergunta: Engordei? Homem nenhum pode responder com absoluta honestidade. Um lânguido nem tanto é o máximo que deve ousar. Verdade é virtude que não sobrevive sozinha. Toda verdade tem de vir precedida pela graça. Os absolutamente sinceros são na maioria das vezes intoleráveis. Toda sinceridade carece da graça porque nela o amor se sobrepõe à retidão. Quem ama não teme ser rotulado como inconstante. Misericórdia encobre. O intuito de proteger patrocina um tipo de mentira: a incoerência.  Há um provérbio bíblico, inclusive, que não condena esse jeito de encobrir os fatos:O ódio espalha dissensão, mas o amor esconde os pecados (10.12).
Quem se oporia a certas mentiras médicas? Quem não se valeu delas? Ainda não vai ser desta vez afirma o mais criterioso médico diante do paciente com um diagnóstico terminal. No corredor do hospital, os parentes combinam entre si ao saberem do veredito: Vamos entrar no quarto, mas nada de choro; temos que manter uma atitude otimista para não abatê-lo mais. Todos disfarçam e a mentira alivia o ambiente. Os sorrisos ensaiados e as conversas amenas não passam de eufemismo. Pura hipocrisia. Uma farsa caridosa, todavia.
Que tal as mentiras poéticas? Os poetas mais exímios mentem. Transformam sentimentos banais em amor inflamado. Realçam a força dos substantivos com adjetivos precisos. Valem-se das hipérboles para descrever as paixões. Inflamam os romances com floreios insinuantes. A poesia tem força de transformar o rei amante em escravo e a donzela amada em rainha. Fernando Pessoa foi feliz ao constatar: Todo poeta é um fingidor. Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente. O poeta nem sempre se dá conta de que sua malicia enriquece a vida.
A Bíblia relata as mentiras de vários heróis sem censurá-los. Jacó ganhou uma primogenitura enganando o pai (Gn. 27). Tamar, uma das ancestrais de Jesus, conseguiu engravidar se travestindo de prostituta para engodar Judá (Gn 38). José ludibriou a família como estratégia para não revelar imediatamente a identidade (Gn42). O rei Davi se fez de doido como meio de escapar do ódio de Aquis, rei de Gate (1Sm 21). Rute passou a perna em Boaz, salvou-se e garantiu a genealogia do Messias (Rt 3).
Lógico, impossível defender o dolo, a injúria, a impostura. Certamente o mentiroso não tem lugar na roda dos justos. Tanto o farsante, como o hipócrita e o maldoso que gagueja merecem o fim dos ímpios. Contudo, não há como negar: a humanidade não sobreviveria sem o recurso da mentira.
Menos farisaísmo, por favor!
Soli Deo Gloria

domingo, 27 de outubro de 2013

Recado a um possível biógrafo

Ricardo Gondim

Não sei porque alguém se interessaria em escrever, algum dia, uma biografia minha. Não consto na agenda da presidente. Nunca almocei com o secretário geral das Nações Unidas. Jamais fui capa de revista semanal. Todavia, sempre é possível haver algum maluco, especialista em temas excêntricos. Se uma pessoa se interessar em pesquisar minha vida, facilito sua pesquisa.

Biógrafo amigo, de antemão advirto: você não encontrará em minha história nada fenomenal. Logo aprenderá que não fui gênio em nada. Nunca voltei os ponteiros dos relógios. Jamais abri o mar para que uma multidão atravessasse a pé enxuto. Não fui sequer apontado para ganhar alguns concurso literário, quiçá o Prêmio Nobel. Saiba, porém, e eu juro: sempre tentei.

Tentei ser poliglota. Meses antes de completar treze anos, matriculei-me, simultaneamente, em cursos de alemão, inglês e esperanto. Cedo notei que meu quociente de inteligência não alcançava o alemão. Cheguei a apostar que os sonhos de Zamenhof se concretizariam. Contudo, logo percebi, se não houvesse um investimento milionário ou multinacional, patrocinando o projeto do esperanto, Babel jamais seria revertida. Que grande perda - ouvi de meu professor quando desertei a língua que pretendia unificar a humanidade. Foi realmente um estrago. Eu já sabia recitar em esperanto certos trechos da Iracema de José de Alencar. Progredi no inglês. Hoje me orgulho de dominá-lo com facilidade.


Tentei ser atleta. Deus sabe como. Fui vice-campeão cearense infantil de judô – perdi o título de campeão, numa amarga derrota para o Jorge, meu irmão mais novo. Migrei para o basquete. Quando tentei fazer tabelas, ouvi do Luiz, técnico do Maguari Esporte Clube: Mais cuidado, canhoto mongol. Nunca mais voltei aos treinos. Eu realmente não conseguia coordenar os três passos permitidos no basquete para fazer as tabelas. Voltei-me para a natação. Ganhei um terceiro lugar nos Jogos Brasileiros das Escolas Técnicas. Subi a um pódio em que apenas cinco disputaram. Ficou nisso! Como não baixei o tempo, no ano seguinte sequer me classifiquei para os próximos jogos. Quando morei nos Estados Unidos, tentei enganar. Cheguei lá com ares de quem jogava pólo aquático. Alcancei o time principal. Mas como goleiro. E você, querido biógrafo, sabe o que significa o posto de goleiro, não é?


Tentei ser diplomata. Matriculado no curso noturno na faculdade de administração de empresas da Universidade Estadual do Ceará, não dispunha de tempo, dinheiro ou cabedal para o Instituto Rio Branco, além de não dominar o francês – só agora vejo que tentar falar alemão não foi boa empreitada. Me vi obrigado ao cargo de chefe do departamento de tradução de uma empresa filantrópica americana. Eu traduzia cartas de crianças pobres para seus padrinhos.


Tentei ser um bom presbiteriano. Só que, não sei explicar, numa epifania, tive uma experiência pentecostal. Falei em uma língua que parecia soluços espirituais – a que os teólogos chamam de glossolalia. Cordialmente convidado a não mais permanecer entre os presbiterianos, tive que sair. Resolvi tentar a Assembléia de Deus. Esforço vão. Eles nunca pararam de me olhar com suspeita. Não entendo suas razões. Quem sabe? Eu nunca admiti que brincos na orelha das mulheres fossem piores do que a vaidade de suas disputas eleitorais para cargos na denominação. Anos depois, continuei em minha saga pelas estruturas da religião. Agora como evangelical. De novo, amarguei insucesso.

Desencantei-me com a fôrma teológica dos irmãos reformados. Tem gente que consegue ser mais luterano do que lutero, mais calvinista do que Calvino e mais wesleiano do que Wesley. O adesismo cultural de certos setores ao american-way-of life, me enervava. Perdi amigos. Escanteado, não tive opção senão prosseguir.

Tentei ser um bom líder espiritual. Dei-me com todas as forças ao projeto de edificar uma comunidade compromissada com a missão de Jesus. Sonhei com uma igreja engajada socialmente, amando os pobres e desafortunados. Desejei ver mulheres e homens preocupados em encarnar valores verdadeiros. Por décadas compareci a todos os acampamento de jovens e de casais. Varei madrugadas em vigílias de oração. Jejuei. Preguei com esmero. Só subi ao púlpito depois de me preparar por horas a fio. Depois de tudo, não fui poupado. Tentaram me escorraçar. Lealdade foi para o lixo em nome da defesa da sã doutrina. Gente que hospedei em minha casa não contou até três na hora da traição. Para me desacreditar publicamente, espalharam que eu negava Deus. A cidade onde nasci e morei me tratou como um apóstata sem vergonha. Um enorme número de pessoas, que poderiam ser minhas amigas, não sei hoje nem por onde andam. Filhos de amigos rejeitam o jeito de encarar a fé que consumiu meus melhores anos.


Tentei ser um bom pai. Procurei não repetir os erros da família de onde vim. Sonhei viver os últimos dias cercado pelos filhos e netos. Nos últimos anos, depois que somo os quilômetros que me separam da Cynthia e Naran, choro.

Tentei ser verdadeiro em todas as minhas relações. Sei que feri. Permiti que arroubos suplantassem moderação, que paixões encobrissem siso. Acabei magoando inocentes. Sempre que me dei conta das dores que provoquei, fui ao fundo do poço. Procurei pedir perdão para que minhas imaturidades não se transformassem em cinismo. Reconheço, não se repõe tempo perdido, não se consertam feridas antigas. Fica a esperança de que os males que causei não tenham sido letais. E que meu próximo consiga reinventar-se a partir das decepções que causei como eu procuro, a partir da minha contrição.

Estou no último terço da vida. Tive mais lutas que vitórias. Aprendi a duras penas que a grandeza humana não vem dos triunfos. Não há triunfo. Porém de sua resiliência de não se entregar ao destino.

Nas etapas que atravessei procurei não sucumbir a ele, o destino. Se minha história, não inspirar grandes arroubos, acatarei o seu duro veredito, biógrafo amigo. Concordo, não fui tão bem sucedido! Todavia, seja gentil, registre pelo menos que tentei. E muito!

Soli Deo Gloria

sábado, 31 de agosto de 2013

Ricardo Gondim recita “Carta Aos Puros” de Vinícius de Moraes

quinta-feira, 27 de junho de 2013

A distância entre o púlpito e as ruas

Ricardo Gondim
Oportuno ressuscitar o Chacrinha: Quem não se comunica se trumbica. Em plena ebulição de manifestantes lotando centenas de cidades pelo Brasil a fora, uma breve visita aos programas evangélicos revela não apenas a desconexão das principais igrejas-empresas, como a alienação que elas submetem seus fieis. Todas mantêm o velho e sovado discurso do milagre, da bênção da prosperidade e da salvação para depois da morte. Resta uma pergunta: os comunicadores evangélicos são bem-sucedidos em suas empreitadas? A resposta cabe tanto um sim como um não. Sim, caso se considere o espetacular crescimento numérico dos crentes e fortuna que amealham. Não, se levarmos em conta o recrudescimento de preconceitos e a ostensiva rejeição que evangélicos sofrem entre os formadores de opinião.
Dificilmente qualquer um dos famosos televangelistas se aventurariam nas ruas durante os protestos. Nenhum deles marcharia ao lado daqueles primeiros manifestantes. Chego a pensar no pior. Se rasgaram bandeiras de partidos, imagine o que fariam aos mais audazes televangelistas – os que vivem de dedo em riste. Se já aconteceram relatos de discriminação contra pastores ao preencherem cadastro de crediário ou quando alugam casas e fazem o check in em hotel, numa passeata em que xingam tudo e todos, os pastores seriam linchados. Se políticos são considerados – numa generalização irresponsável – corruptos, o senso comum trata pastores como falastrões, sempre ávidos por dinheiro.
Eugene Peterson narra sua aflição numa conversa com um passageiro que viajava ao seu lado pela Ásia. Em determinado momento, o homem indagou a profissão de Peterson. Sou pastor, respondeu. A reação do homem foi constrangedora: Pastor, responda-me, por favor: por que, quando me vejo perto de um monge budista, tenho a sensação de estar ao lado de um santo homem de Deus, mas junto de um pastor fico com a impressão de que converso com um  homem de negócios?
Líderes evangélicos precisam acordar: o tempo reclama por mais do que mera retórica. Na inquietação popular, evidenciou-se a penúria dos sermões – o conteúdo dos púlpitos não vai além de chavões surrados, reciclados e esvaziados por excessivo uso. A grande maioria dos pastores só tem um punhado de versículos – não passam de uma centena – pinçados dos contextos de guerra ou da percepção do Deus ainda tribal em Israel. Pastores repetem ad nauseum vitória nas batalhas e milagres excepcionais, mas não conseguem articular agenda de mudança social. O meio gospel trata como excepcionais evangelistas que decoram esses poucos versículos e conseguem citá-los, como rajada de metralhadora, no meio de um sermão. A retórica funciona bem entre os que se acostumaram à subcultura gospel, mas soa estranha fora de seus muros.
O tempo exige credibilidade. Cansado de corrupção, de conto-do-vigário, o povo precisa de um aceno mínimo dos pastores de que eles não participam da mesma cultura dos caudilhos, dos coronéis, das oligarquias e das elites que se favoreceram da miséria. Caso contrário, permanecerá no país a ideia de que eles não passam de espertalhões, prontos a surfar na onda que prevelacer. O povo os procurará apenas para conseguir bênção, mas jamais acreditará que têm proposta de como organizar a vida. Assim pastores se condenam à categoria de feiticeiros, hábeis na técnica de acessar o sobrenatural, fazendo com que a magia substitua o engajamento político e a religião continue vassala dos interesses de quem precisa de alienados.
Agora, mais do que nunca, tornou-se imperativo sintonizar sermão e vida. De nada serve lidar com conceitos que fazem todo sentido em torres de marfim. Como o evangelho não doura a pílula existencial, os pastores não podem ter a pretensão de que, em tese, os fieis, literalmente, andam sobre as águas, seguram serpentes sem serem picados e bebem veneno. Os cristãos também sofrem em ônibus lotados, também esperam semanas por vaga em hospital público e também sobrevivem com subsalários.
Tornou-se inadiável o diálogo entre a igreja e os diferentes setores que reivindicam mudança radical. Ficou claro: o problema da corrupção, pobreza crônica e injustiça social extrapola pessoas e partidos políticos. Qualquer partido, uma vez no poder, ficará exposto a uma estrutura que exige que ministros ou presidentes de estatais – da Petrobrás aos Correios – sejam ocupados, não por técnicos, mas por indivíduos que defendem os interesses particulares de caciques partidários.
O dilema shakespeareano em que o Brasil se meteu é: mudança ou revolução, eis a questão. Os neopentecostais brasileiros podem até pedir mudança, mas parecem indispostos a “vender tudo e dar aos pobres”. Envolver-se numa revolução radical de inclusão, ascensão social e justiça econômica custa caro – uma cruz. Em Para além do bem e do mal, Nietzsche disse quequando adestramos a nossa consciência, ela beija-nos ao mesmo tempo que nos morde. Fica a sensação de não haver grupo mais preocupado nesse adestramento do que os neopentecostais; e mesmo que não cogitem, eles estarão entre os que serão mordidos.
O Brasil ferveu e os pastores pediram aos crentes que orassem. Pobres líderes. Esqueceram da resposta de JHVH a Moisés diante do Mar Vermelho: Por que orar nesta hora? Manda o povo que marche. Infelizmente, poucos pastores têm coragem de serem os primeiros a colocar o pé nas águas tumultuadas de um oceano de incertezas. Mais uma vez grandes segmentos da comunidade evangélica perderam o kairós da história e de Deus. Repito: infelizmente.
Soli Deo Gloria

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Entre personagens e pessoas

Por Ricardo Gondim
Como se sente a atriz depois que as cortinas descem sobre o palco e ela vai para o camarim? Como o sacerdote lida com a vontade de chorar depois que se despe das vestes clericais? Sem farda, sobra alguma ternura para o general abraçar o filho? Depois do fim do casamento, o filósofo se angustia por ter sido chamado de intolerável?
Sem as distrações sociais, a existência esperneia nos desejos onipotentes e nos anseios de infinitude. O anelo de ser se projeta sobre a vida. Sem coragem para encarar a precariedade da existência, alguns desmoronam outros se escondem.Se o dever social se torna maior do que as demandas do coração, a alma sofre.Quando o imperativo de continuar se agiganta, os espaços onde se consegue respirar encolhem. Assim, em nossos olhos fundos guardamos tanta dor, “a dor de todo este mundo”.
Só longe do olhar dos admiradores, a atriz é livre?  Só na solidão, o sacerdote sorri feliz?  Só desnudo das divisas, o general consegue ouvir Bach? Só alheio ao rigor acadêmico, o filósofo se depara consigo mesmo? Só na alcova, o sacerdote conversa com a própria alma? Os imperativos que nos são impostos têm força de nos esconder da vida verdadeira. Depois de desempenhar todos os roteiros, ficamos com a impressão de que a sina humana se reduz a zumbir em torno da chama de uma vela que logo se apagará
Sobranceira, senhora de si, mas sempre surpreendentemente paradoxal, a humanidade permanece a mais fulgurante jóia do universo. Jóia que nunca perdeu a capacidade de assombrar com maldade. Entre grandeza e mesquinhez, homens e mulheres vivem o conflito de conviver com o infinito e com a precariedade de desaparecer numa batida de coração. Ao mesmo tempo sobranceiros e baixos, as pessoas precisam criar personagens. Para continuarem altivas, usam máscaras. É preciso fingir as lágrimas. Corretas, munem-se de brochas – todos preparados para caiar o sepulcro que os receberá.
A vida acontece na nesga espremida entre o público e o privado. Ali, entre palco e bastidor, entre púlpito e sacristia, esgueiramo-nos para dar algum sentido a esta breve e sofrida existência. No trânsito entre esferas tão distintas, ansiamos por uma chance de distinguir boa intenção de dissimulação. Quem sabe, no movimento entre o secreto e o aberto, saberemos o momento em que o ódio procura passar por defesa da justiça, como a inveja se traveste de elogio ou quando a covardia se fantasia de prudência.
Esperança pode brotar tanto de ações luminosas como de movimentos anônimos. A atriz e a mulher, o sacerdote e o homem, o general e o cidadão, o filósofo e o marido precisam trombar um com o outro. Talvez descubramos o segredo de viver se as nossas personagens não nos asfixiarem.
Soli Deo Gloria

sábado, 4 de maio de 2013

Milagre, um bom negócio


Ricardo Gondim
Casas Bahia e Magazine Luiza disputam o mesmo mercado. As duas lojas se engalfinham para abocanhar o filão dos eletrodomésticos, guarda-roupas de madeira aglomerada e camas de esponja fina. Buscam conquistar assalariados, serralheiros, aposentados e garis. Nos comerciais da televisão, o preço da geladeira aparece em caracteres pequenos, enquanto o valor da prestação explode gigante na tela. A patuleia calcula. Não importa o número de meses, se couber no orçamento, uma das duas, Bahia ou Luiza, fecha o negócio – com um juro embutido entre os maiores do mundo.
Toda noite, entre oito e dez horas, a mesma cantilena se repete nos programas evangélicos na televisão. Pelo menos quatro “ministérios” disputam outro mercado: o religioso. Caçam clientes que sustentem, em ordem de prioridade, empreendimentos expansionistas, ilusões messiânicas e o estilo de vida nababesco de seus líderes. Assim, cada programa oferece milagre. Cada um alicerça a promessa de que Deus vai prosperar, amenizar problemas matrimoniais, resolver causas na justiça com testemunho. Entrevistam gente que jura ter sido brindada pelo divino. Não faltam documentos, exames médicos, carros luxuosos. Deus teria usado aquele apóstolo, bispo, missionário, para abençoar inúmeras pessoas para uma vida sem sufoco.
Infelizmente, o preço do produto religioso – o milagre – também não é explicitado. Alardeia-se apenas a espetacular maravilha. As letrinhas, que não aparecem na parte de baixo do vídeo, caso fossem reguladas pelo conselho nacional de propaganda, teriam que deixar claro, por mais “ungido” que for o missionário, que em nenhuma dessas igrejas televisivas o milagre é gratuito ou instantâneo.
Um monte de exigência vem embutida na promessa de bênção: ser constante nos cultos por várias semanas, contribuir financeiramente para que a obra de Deus continue e, ainda, manter-se corretíssimo. Um deslize mínimo, um pecadilho qualquer, impede o Todo Poderoso de concretizar a maravilha. E ainda tem a falta de fé como critério inegociável. Qualquer dúvida é considerada um obstáculo, que mata a possibilidade do milagre.
Considerando que a rádio também divulga prodígios a granel, como um cliente religioso pode optar? Deus apontou o dedo para qual igreja, missionário, apóstolo, pastor ou evangelista? Quem foi “ungido” representante do divino para o privilégio de “operar” esse sem-número de milagres? Um pai que sofre com uma filha com leucemia aguda, não pode se dar ao luxo de errar. Se apela para uma igreja com pouco poder sobrenatural, perde a filha. O seguro seria ele frequentar todas. Mas como? Ele é pobre e não tem como fazer todas as campanhas que produzem o extraordinário.
O  acesso ao milagre se complica ainda mais porque essa igrejas-empresas gastam milhões para veicular na mídia um valor simbólico: exceção. Sim, no milagre ofertado pelos televangelistas está a expectativa egocêntrica de que o Todo Poderoso distinguirá apenas um punhado entre todos os outros sete bilhões de habitantes do planeta. “Deus abrirá uma brecha na ordem da vida para privilegiar você”. “Outros podem padecer nos corredores sujos de ambulatórios médicos, mas você que veio aqui na igreja X, não precisará passar por tanta humilhação”.
Lojas de eletrodoméstico vendem eletrodoméstico, óbvio. Igrejas evangélicas comercializam a esperança. Elas fortalecem a ideia de que existem agenciadores do favor divino. Alguns com exclusividade. Pelo serviço cobram caro, muito caro.Afinal de contas, um produto celestial não pode ser negociado como bem de quarta categoria. Os televangelistas só oferecem “Brastemps” vindas do céu.
Mas, a dúvida persiste: qual o melhor balcão de serviços religiosos? Que varejista está mais aparelhado para distribuir os favores divinos? Os vendilhões do templo de hoje não se comparam aos do tempo de Jesus. Eles se escolaram no marketing. Especializaram-se em conforto. Valem-se da linguagem piedosa que confunde fé com credulidade. Se as grandes redes comerciais devem se conformar ao Código do Consumidor, as igrejas hábeis em produzir milagre não passam por nenhuma regulamentação. Se algo der errado, o cliente nunca tem razão. Se a leucemia matar a filha, o pai, além de enlutado, acabará responsabilizado pela perda. Terá de escutar que a menina não foi curada porque o diabo entrou por alguma “brecha” e matou. Ou que alguém da família não “perseverou na fé” ou “não honrou a Deus com o dízimo”.
Assim como na música do Chico Buarque os frequentadores dessas igrejas-caça-níqueis encarnam o Pedro Pedreiro e ficam “esperando, esperando, esperando.
 Esperando o sol, esperando o trem.
 Esperando aumento para o mês que vem.
 Esperando um filho prá esperar também”.
Mercadologicamente, Casas Bahia e Magazine Luiza se comportam com critérios éticos bem à frente de algumas igrejas. Melhor assim, geladeira nova é bem mais útil do que a ilusão do milagre.
Soli Deo Gloria