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"...Enquanto ensinarmos que o mundo é um lugar a ser evitado, que as mazelas humanas são fruto da ausência de Deus, que Deus não ouve os pecadores, que só a igreja evangélica é que detém os "diretos autorais" da salvação, que ser forte e inabalável é sinônimo de fé e que ser pecador é ser inimigo de Deus então ainda não entendemos o plano da salvação e o evangelho de cristo rebaixado apenas á mais uma religião...."

segunda-feira, 7 de abril de 2014

O ÚLTIMO CRISTÃO

o último cristão
Por Paulo Brabo

Escândalo. Insen­sa­tez. Vergonha.
Os primeiros caras a divulgar e propor o cris­ti­a­nismo ao mundo tem o mérito adicional de terem escolhido muito bem as palavras. Segundo o enfezado apóstolo Paulo, apegar-se à sin­gu­la­ri­dade de um sujeito mor­tal­mente pregado à cruz e intei­ra­mente des­pre­gado das pri­o­ri­da­des usuais do mundo é para o obser­va­dor isento de fato escândalo, insen­sa­tez e vergonha – e nem teria como ser diferente.
Os últimos serão os primeiros.
É insen­sa­tez porque tanto a doutrina quanto o pre­ce­dente de vida (e morte) do fundador ensinam que o sucesso se obtém no mais inequí­voco fracasso e a grandeza na mais abjeta humi­lha­ção; é escândalo porque ele sustenta que a alma é sólida e a matéria rala, e que não faz portanto sentido o sujeito adquirir o mundo inteiro e ver a vida escorrer, sem con­sis­tên­cia, na peneira final; é vergonha porque para beneficiar-se do pacote a pessoa tem de pagar o mico de reconhecer-se não melhor do que ninguém.

Ser cristão requer-se ver-se inces­san­te­mente no outro: olhar para fora de si mesmo e ver Deus pregado na cruz e o cacha­ceiro derrubado na rua e sacar que de alguma forma mis­te­ri­osa você é agora eles; que a tragédia de um é a tragédia de todos, e entrou em ação um mistério tremendo de rela­ci­o­na­mento, de favores devidos e de iden­ti­dade; que o único jeito decente de viver é baixar a bola e salvar o que der da dignidade dos outros de forma a sal­va­guar­dar algo da sua. E da de Deus.
Essa percepção de uma glória pessoal que se esconde sob o manto da tragédia com­par­ti­lhada (“ninguém tem amor maior do que dar a vida pelos seus amigos”, nas palavras de Jesus) foi, natu­ral­mente, perdida ao longo dos séculos do cris­ti­a­nismo ins­ti­tu­ci­o­nal. Escândalo, insen­sa­tez e vergonha foram devi­da­mente sani­ti­za­dos em pros­pe­ri­dade, ortodoxia e sucesso. A empatia e a pre­o­cu­pa­ção generosa com o outro secaram-se em glo­ri­fi­ca­ção dos apetites de cada um.
Insensato é agora o cristão que não exige do Patro­ci­na­dor sucesso finan­ceiro, rea­li­za­ção pro­fis­si­o­nal, saúde, assis­tên­cia dentária e tra­ta­mento de beleza.

Pelos critérios de Jesus, para quem os menores é que são grandes e os humildes os ver­da­dei­ra­mente gloriosos, o cris­ti­a­nismo evan­gé­lico con­tem­po­râ­neo atira no próprio pé na ilusão de que está mirando nas alturas. O evangelho revisto e atu­a­li­zado rende-se à lógica ines­ca­pá­vel do anúncio de página dupla: bem-aventurados os ricos, os saudáveis, os espertos, os bonitos, os inte­li­gen­tes e os bem-sucedidos, porque são invejados por todos. Porque deles é a chave do modelo 2007 e o controle remoto do Sound System. Porque estão fazendo MBA. Porque tomam leite desnatado sem camisa olhando de sua janela envi­dra­çada para uma praia deserta.

Está mais do que na hora de resgatar o escândalo, a insen­sa­tez e a vergonha que foram legi­ti­ma­mente e desde o princípio asso­ci­a­dos ao cris­ti­a­nismo. Quero adicionar portanto aos meus 10 motivos para não ser cristão este: ser cristão requer carregar nas costas dois milênios da má reputação de um cris­ti­a­nismo tosco, incom­pe­tente, incom­pleto e com demasiada freqüên­cia nocivo.

O ensino de Jesus só permanece novo porque nunca foi tentado. Nos últimos mil e oito­cen­tos anos, pelo que sabemos, esteve longe de ser colocado em prática com esse nome.
Esqueça as reve­la­ções do Evangelho de Judas: são as páginas de Mateus, Marcos, Lucas e João que contém material inédito. São elas que dão tes­te­mu­nho per­tur­ba­dor de uma radiante insen­sa­tez que não temos coragem de cometer, porque reque­ri­ria tudo de nós – o que é, natu­ral­mente, insensato dar e pedir. Como o narrador de Borges, pre­fe­ri­mos honrar um exemplo virtuoso com palavras a reco­nhe­cer que somos por demais covardes para nos rebai­xar­mos à glória.

Melhor seria portanto não manchar a reputação irre­to­cá­vel de Cristo com o nome de cristão. Ele merece esse nosso sacri­fí­cio. Você deveria talvez fazer como meu amigo inglês Julian, que é espi­ri­tual sem ser religioso; que confessa-se cristão platônico e assume em todo momento a conduta de Cristo. Ou como o Farah, que está pra­ti­ca­mente muçulmano, tem a alma ines­go­ta­vel­mente rica e o coração generoso e dá tes­te­mu­nho da graça. Como Gandhi, que recusou aus­te­ra­mente a etiqueta de cristão e levou ter­ri­vel­mente a sério (e às últimas con­seqüên­cias) as palavras de Jesus.
Está na hora de resgatar o escândalo, a insen­sa­tez e a vergonha que foram desde o princípio asso­ci­a­dos ao cristianismo.
Uma deli­be­rada e silen­ci­osa des­con­ver­são em massa, pensando bem, talvez trouxesse final­mente toda a glória que o ensino, o exemplo e a obra de Jesus des­co­nhe­ce­ram nos últimos milênios. Per­ma­ne­ce­ría­mos 
cristãos
 em segredo, a portas fechadas, lutando con­sis­ten­te­mente, em absoluto sigilo e completa dedicação, pelo Nome que não ousamos macular ou pro­nun­ciar. No fracasso ins­ti­tu­ci­o­nal e na cru­ci­fi­ca­ção ide­o­ló­gica do cris­ti­a­nismo talvez estejam a semente da sua ressurreição.
O último cristão pode muito bem ser o primeiro.

Postagem original em: http://www.baciadasalmas.com/2006/o-ultimo-cristao/
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