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"...Enquanto ensinarmos que o mundo é um lugar a ser evitado, que as mazelas humanas são fruto da ausência de Deus, que Deus não ouve os pecadores, que só a igreja evangélica é que detém os "diretos autorais" da salvação, que ser forte e inabalável é sinônimo de fé e que ser pecador é ser inimigo de Deus então ainda não entendemos o plano da salvação e o evangelho de cristo rebaixado apenas á mais uma religião...."

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

As antessalas


Por Ricardo Gondim
Já me vi em duas antessalas: por volta dos 12 anos, na que me conduziu à puberdade; com 38, esperei a vez de experimentar a meia idade. Agora chego ao penúltimo portal: ano que vem serei convidado ao baile dos legalmente idosos – onde, diligente, tentarei adiar o último e definitivo pórtico: o da morte.
Quem vê antigas fotografias minhas, não acredita que eu seja a mesma pessoa. Mudei muito. Os cabelos rarearam, a cintura engrossou, as sobrancelhas se desenharam como arcos, a barba grisalhou. Meus olhos, sobrecarregados com o muito que viram, escureceram – perdi o castanho leve de outrora. Meus sorrisos se resguardam, cautelosos, e as lágrimas se rebelam com frequência maior.
O mundo também mudou. Criança, fui “televizinho” em Londrina. Diante de uma televisão a válvula, que demorava 5 minutos para mostrar uma imagem estática, cheia de riscos e números, ficávamos horas esperando o seriado Bonanza.
Quando o golpe militar destruiu nossa família, eu e vovô Zé Gondim varamos noites inteiras, tentando sintonizar o velho rádio de botões grandes que trazia notícias da longínqua rádio de Moscou.
Telefonar era uma aventura. Atrevi-me a manter namoro com uma menina que se mudou para o sudeste do Brasil. Um telefonema desde Fortaleza era um acontecimento. Além de custar uma fortuna, a gente pedia ligação e a telefonista, dependendo do humor, podia demorar entre 45 a 90 minutos para completar.
Lembro quando tirei as primeiras fotografias. A máquina era uma caixa preta, grande. Sempre que alguém ia “bater um retrato”, ouvia advertência do tipo: “”bate com cuidado, temos pouco filme”; “não desperdiça, filme Asa 400 é muito caro”.
Varei a maior parte da vida sem comer pizza entregue em casa – Meus Deus, quem imaginava serviço “Delivery”? Restaurante “no quilo” é novidade recente. Margarina foi a salvação dos cardíacos – para depois perder o posto para manteiga. Os antenados falavam de comida “macrobiótica”;  não existiam verdura, fruta ou legumes “orgânicos”.
Para entrar no Cine São Luiz, em Fortaleza, fui obrigado a pedir emprestado um paletó do tio Telmo. O mundo tinha requintes, alguns bobos outros bons. Em qualquer voo, a Varig oferecia tanto almoço como jantar a bordo – com direito a talher inoxidável.
Uma propaganda marcou minha juventude: um torcedor de futebol, sentado nas arquibancadas no Maracanã, vestia Nycron (Tergal, talvez). O homem se punha em pé a todo instante, enquanto se ouvia: “Senta-levanta, senta-levanta, põe o paletó, tira o paletó” (Imagina, de terno no Maraca!) E a calça, diferente do linho, não amassava nunca. Lembro também de uma propaganda em que o médico recomendava cigarro mentolado, “que ajuda nas infecções da garganta”.
Não existiam cemitérios “clean” – com discretas lápides no chão (“coisa de americano!”). Famílias brasileiras ostentavam fortuna e poder na tumbas de mármore, que tanto impressionavam quanto metiam medo.
Cresci horrorizado com as guinadas da política. A guerra do Vietnam me indignava – guardei na memória o rosto de uma menina, fugindo do fogo das bombas Napalm. Chorei tanto a morte de Martin Luther King como de Salvador Allende. Lia “O Pasquim” na esperança de que a turma de Ipanema mudasse alguma coisa. Na faculdade, em Trabalho de Conclusão de Curso de OSPB (Organização Social e Política do Brasil), escrevi duas palavras proscritas: camponês e proletário. O professor, um católico ultraconservador, infiltrado pela repressão na Faculdade de Administração, por algum motivo se apiedou de mim. Ele me convidou para tomar um copo de leite (sim, copo de leite) na casa dele. Ali, recebi a mais explícita ameaça do mesmo regime que prendeu papai: “Ricardo, escreva outros sinônimos para essas palavras, caso contrário, serei obrigado a reencaminhar o seu trabalho. Sabendo de seu histórico familiar, você terá muitos problemas”.  Reescrevi o texto ali mesmo, na cozinha.
Fui contemporâneo de alguns clássicos do cinema: 2001, Uma Odisseia no Espaço, Repulsa ao Sexo, A Primeira Noite de um Homem,  Bonnie and Clyde, Perdidos na Noite. Na literatura, lamentei que candidatas a Miss estigmatizassem O Pequeno Príncipe, que virou literatura menos importante. Cantei mais de um milhão de vezes Bridge over Troubled Water de Simon e Garfunkel. Claro, acompanhei os Festivais que consagraram Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Ivan Lins.
Morei nos Estados Unidos no tempo dos Jesus Freaks; eles encarnavam uma alternativa à religião organizada– mas acabaram devidamente incorporados pelo sistema. Empolguei-me com o Movimento Evangélico – principalmente, o Pentecostal. Depois de duas semanas como “estagiário” na sede do ministério de Jimmy Swaggart, acordei para uma verdade que até então evitara: o circo religioso tem uma agenda mais importante que a do próprio Deus. Vi que o negócio da fé supera qualquer interesse espiritual minimamente legítimo. Para desvencilhar-me desse esquema, precisei de paciência e carinho. Destruir ídolos que a religião fabrica requer mais tempo e mais esforço do que gastos para criá-los.
Amei e fui amado. Amado por minha mulher, aprendi a cuidar dos filhos. Cuidado pelos filhos, aprendi a doar-me aos netos. Admirado pelos netos, instruo-me na virtude de acolher destituídos, proscritos e discriminados – agora sei que praticar esse tipo de hospitalidade aproxima de Deus.
Aos 59 anos, oro com o salmista: Ensina-me a contar os meus dias de tal maneira que alcance coração sábio.Não tenho ideia de como serão os próximos anos. Por enquanto, murmuro a música de Almir Sater: Ando devagar/Porque já tive pressa/E levo esse sorriso/Porque já chorei demais/Hoje me sinto mais forte,/Mais feliz, quem sabe/Só levo a certeza/De que muito pouco sei,/Ou nada sei/Conhecer as manhas/E as manhãs/O sabor das massas/E das maçãs/É preciso amor/Pra poder pulsar/É preciso paz pra poder sorrir/É preciso a chuva para florir/Penso que cumprir a vida/Seja simplesmente/Compreender a marcha/E ir tocando em frente/Como um velho boiadeiro/Levando a boiada/Eu vou tocando os dias/Pela longa estrada, eu vou/Estrada eu sou/Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas/E das maçãs/É preciso amor/Pra poder pulsar/É preciso paz pra poder sorrir/É preciso a chuva para florir/Todo mundo ama um dia,/Todo mundo chora/Um dia a gente chega/E no outro vai embora…
Soli Deo Gloria
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