Por Ricardo Gondim
Meu amigo Elienai Junior escreveu “Salvos da Perfeição” como um convite para abandonarmos pretensões onipotentes. Aceitei o convite. Eu desejo ser salvo de todas as minhas pretensões perfeccionistas. Aliás, há algum tempo ando crescentemente em paz com as minhas ambiguidades. Aceito as sombras da interioridade sem o terror religioso, que antes me esbofeteava. Já encarei defeitos como moinhos que precisam ser destruídos; hoje vou no sentido contrário e pergunto: posso me valer de minha própria precariedade para aprofundar a minha humanidade? Entendo que aquilo que me faz paradoxal não me levará à perdição.
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Se perfeição, no sentido metafísico, tem a ver com o finito menos valioso do que o infinito, prefiro um milhão de vezes a finitude. O absolutamente puro não pode relacionar-se com o impuro – ele nunca sabe se corre risco de contaminar-se. O perfeito se faz inamovível. Estagna. Empaca. Paralisa. Se algum dia, improbabilidade das improbabilidades, alguém conseguisse atingir a perfeição, tal pessoa se condenaria à solidão. Não poderia zangar-se já que raiva é um estado inferior à placidez. Não poderia amar, pois amor implica em vulnerabilizar-se ao outro.
Se o imaculado alcança o SER como estado puro, perde-se como pessoa; e do patamar de sua altivez, morre. Superior a todos, estanca a possibilidade de qualquer transfusão de sangue, de vida, que algum mal avisado amigo – imperfeito – quisesse doar. Sem experimentar processo, sem admitir que lhe falta algo, se isola, e vai para o inferno.
Não ambicionar ser perfeito (mesmo que fosse possível) significa atrever-se a continuar em transformação. O impecável se condena a encalhar na esfera que teólogos chamam de mundo ideal – da pura imobilidade, do marasmo completo, da placidez mais profunda de onde exala enxofre.
A história acontece repleta de senões. Não é necessário um exame minucioso para detectar: ainda não nasceu humano que prescinda de retoques. Mesmo o filho de Maria, diz a Escritura, “aprendeu a obediência naquilo que sofreu” – se aprendeu, progrediu; se progrediu, não era perfeito, simétrico, completo, terminado, absoluto.
O Éden está na Bíblia não para lamentar a perda de um estado de pureza, idílico, protegido e inocente. A Bíblia parece não admoestar que se volte ao paraíso perdido – como propôs o chatíssimo Milton. Pelo contrário, a narrativa sagrada parece sugerir que encaremos aquele estágio da humanidade como não desejável. Permanecer no paraíso seria infantilizante. Para a história desenrolar, acontecer de verdade, foi imperioso sair do Éden – Filhos se tornam adultos quando quebram as grades do berço infantil, largam a barra da saia da mãe e entendem que a super proteção do pai idealizado era falsa.
Imperfeição, longe de qualquer parentesco com pecado, é condição humana. Admitir isso não significa humildade, mas simples constatação. Nunca humano algum vai conseguir desvencilhar-se de sua condição deficiente. O que é bom, pois crescimento e maturidade se iniciam a partir dessa admissão. A Bíblia também ensina que qualquer possibilidade de uma existência pós-morte deve contemplar ambiguidade humana, imperfeição e espaço para crescimento. O Apocalipse acena que o porvir eterno manterá as duas realidades mais presentes da existência: inferno e céu. Tanto céu como inferno continuarão depois da ressurreição. Na narrativa escatológica, inferno e céu representam não estado estático ou destino final das almas. O último livro da Escritura revela que tanto no passado, como agora e no futuro só se pode conceber vida humana com sombras e luzes – termo junguiano para as ambiguidades – que criam inferno e céu.
Exatidão, simetria ou pureza não passam de abstrações. No mundo das ideias é possível pensar um círculo perfeito. Contudo, no exato instante em que qualquer círculo for desenhado, defeitos aparecerão. Quem recusa admitir imperfeição se condena a culpa e hipocrisia – ambos adoecedores da alma.
Sistemas totalitários – filosóficos, religiosos ou políticos – tentam entalhar fundo na constituição humana, procurando adequar as pessoas aos imperativos da perfeição. E como nunca conseguem, assassinam. Torna-se imperioso para eles eliminar os que não alcançaram a medida proposta. O sarrafo dos saltos rumo ao ideal foi colocado tão acima da possibilidade humana que ninguém escapa. Daí o suplício dos que estão sujeitos a tais sistemas. Que jugo! Os que já sofreram podem relatar o terror de se verem amaldiçoados por uma divindade que não admite comportamentos que não sejam absolutamente certos. Quanta neurose, paranóia, psicose e morte!
Quando falo de imperativos, lembro que Graça nunca pode deixar de ser o norte cardeal da espiritualidade cristã. Graça ensina que Deus não só tolera os erros humanos, Deus celebra os limites da nossa imperfeição. Ele conhece a finitude de homens e mulheres e a enorme complexidade de viver. E não nos odeia por pisarmos os cadarços de nossos sapatos existenciais. Deus reconhece o valor do erro nos processos pedagógicos.
“O Senhor é misericordioso e compassivo; longânimo e assaz benigno… Não nos trata segundo os nossos pecados, nem nos retribui consoante as nossas iniquidades. Pois quanto o céu se alteia acima da terra, assim é grande a sua misericórdia para com os que o temem. Quanto dista o Oriente do Ocidente, assim afasta de nós as nossas transgressões. Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor do que o temem. Pois ele conhece a nossa estrutura e sabe que somos pó”[Salmos 103.8-14].
O futuro da espiritualidade talvez dependa da capacidade dos crentes reavivarem a teologia da Graça. Se conseguirão, ainda não sabemos. O tempo dirá.
Soli Deo Gloria