Por Ricardo Gondim
Não aguento mais ser pesado, medido, comparado, avaliado. No instante em que me puxaram de dentro da mamãe, começou: “Quantos centímetros?” “Qual peso?” “E a cor dos olhos?” “Com três meses, sentou?” “Já engatinha?” “Aprendeu a ler com que idade?” “Passou de ano?” “Tirou dez em álgebra?” “Sabe trigonometria?” “Domina quantos idiomas?” “Tem pós-doutorado em que áreas?”.
Fico a imaginar o constrangimento da vizinha que teve filho com menos quilos ou com lábio leporino. Qual o peso nos ombros dos pais do menino com alguma anomalia genética? O que dizer para a menina de seios pequenos? O que pensar da enfermeira? – ela não chegou a ser médica! Por que Deus distribui seus dons sem critério?
Para mim, chega. Esse campeonato além de não ter nenhum vencedor, cansa. Desisto de chegar em primeiro lugar. Abro mão da primeira fila de cadeiras. Estou ficando velho para entrar em octógnos com gente de QI anabolizado.
Sinto-me parceiro de Álvaro de Campos no Poema em Linha Reta. Eu também ando farto de semideuses. Mas, vou além dele. Peço licença, quero sair. Não ambiciono o título de ungido. Não procuro a sorte dos biliardários. Abro mão das unanimidades. Não pretendo romper qualquer faixa de chegada. Os bravos que fiquem com suas medalhas penduradas no peito. Não quero ser dono de jato ou helicóptero. As autoridades que se atem com os protocolos do poder.
Assumo: a vida me escanteou para as margens – mas estou bem. Sinto-me crescentemente confortável na companhia dos reles. Acho que já posso ser bem vindo no jantar dos pecadores. Eu, “que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas”, agora me sinto à vontade entre proscritos.
Ponho-me a caminho dos esteticamente feios, dos pobres, dos discriminados, dos exilados, dos falidos. E nessa jornada, redescubro a inebriante verdade bíblica de que Deus preferiu fazer morada no acampamento do oprimido. Ele amava as mulheres menos amadas, e fez com que fossem as mais férteis. Para ele, os gigantes encarnavam o mal e os baixinhos eram gente “segundo o seu coração”.
Sucesso, felicidade, liberdade, não seriam a maldição de Mamon? Será que são mesmo desgraçados aqueles que a Fortuna, deusa sem alma, não brindou? Então, qual o consolo dos negros que morreram nos fétidos porões de transatlânticos? Que estavam sendo poupados da escravidão? Ou será que todas as divindades esqueceram deles? Estavam sós, mulheres queimadas sobre a madeira verde da Inquisição? Chamaremos de bastardos de Javé os soldados rasos que o gás de mostarda asfixiou nas trincheiras da Primeira Grande Guerra do século XX?
Todos os dias, milhões nascem destinados ao anonimato e milhões somem da vida marcados pela miséria. Os pobres se dissolvem em alguma cova rasa. Eles não terão memória. O tempo os esmigalhará em nada. A vida é dolorida, assombrosamente dolorida, para a maioria. Fala-se em compaixão. Palavra fútil. Não haverá compaixão enquanto não se descer do comboio do triunfo.
Levei enxovalhos. Qual foi o meu sofrimento diante da agonia das crianças de Darfur? Sofri olhares de soslaio. Chego a envergonhar-me de minhas aflições. A fotografia de um bairro do Haiti debocha de qualquer lamento meu. Contudo, os poucos e ridículos constrangimentos que rondaram a minha vida serviram para que eu desistisse de segurar o cabo-de-guerra dos bem sucedidos.
Sei que um dia, mais cedo ou mais tarde, todos chegaremos ao fim. Naquele dia, alcançaremos os perdedores. Seremos tão pobres quanto o mais pobre pária indiano, tão frágeis quanto as mais frágeis meninas nordestinas que se prostituem, tão solitários quanto o desterrado africano. E agradeceremos por Deus não dar as costas aos morimbundos. Melhor começar agora a considerar-se derradeiro e não cabeça, louco e não genial, pobre e não abastado.
Soli Deo Gloria